Diálogos #4

Museu Nacional do Traje x Carolina Pimenta

Por José Pardal Pina

Contemplar trajes num museu é provavelmente das experiências físicas mais frustrantes em todo o panorama museológico; e ainda assim consegue ser das experiências que mais estimula a imaginação e a projeção do nosso corpo nos objetos em exposição. Não podemos tocar, mas imaginamos a sensação por experiências passadas; não podemos vestir, mas simulamos a representação mental da nossa silhueta nesses vestidos, corpetes, casacos, capas, etc.; não podemos sentir e, no entanto, desejamos ardentemente fazê-lo, emulando – sempre num esforço mental – personagens, figurinos, modelos de outros tempos ou de todos os tempos. Toda a carga sexual, sensorial, háptica, de tocar a seda, de roçar o pelo de raposa ou de marta, de tatear o calor da sarja e o frio os acessórios cristalinos e reluzentes – tudo isso existe como um desiderato íntimo que se agudiza no cérebro e aí morre. É frustrante, sim, mas não menos sedutor.

O Museu Nacional do Traje é o museu dos invólucros exteriores à pele do corpo, de um corpo que se afigura ora construído ora desconstruído, por vezes como o caráter e personalidade cambiante que o acompanha. Nos bustos expostos, jaz a segunda pele de corpos de outrora, aquela que faz a comunicação entre o sujeito e a sociedade, entre o privado e o público, o visível e o invisível. O palácio em que se instala, Angenja-Palmela, cercado pelo imenso e cuidado Parque Botânico do Monteiro-Mor, dramatiza e serve de cena à exposição permanente. Os azulejos barrocos, os estuques do teto e a amplitude das salas testemunharam muitas festas de trajes a rigor, ao longo dos séculos em que o palácio teve uma vida autónoma. O palácio é um símbolo de poder de um outro regime, tal como os trajes que comporta são símbolos do poder, da ostentação e da vaidade.

Neste contexto, é um museu de camadas várias: do indivíduo, da sociedade, dos costumes, da história, dos tempos, das ocasiões especiais, para se aferir, no limite, a camada ontológica do ser. Nascemos sem esta segunda pela, aprendemos a vesti-la e só a despimos nos momentos mais íntimos. Sim, nascemos nus, mas morremos vestidos.

É justamente da ideia de morte que Carolina Pimenta parte para o Diálogo #4 com o Museu Nacional do Traje. Entre o documental, o que há de pictórico na fotografia ampliada de padrões, e de preciso e técnico na composição dos tecidos, a artista procura a ativação das reservas, sem que para isso seja necessário vestir as peças adormecidas na escuridão. Está aqui a negação de que o museu é um mausoléu – de que as peças vão para o museu para morrerem, tal como Theodore Adorno havia teorizado no século passado. O quarto projeto do Diálogos – como tem sido também apanágio dos projetos anteriores, dada linha condutora deste caderno – devolve-nos ao domínio da arqueologia contemporizadora da arte, da desocultação do passado e posterior contextualização do presente e do conhecimento das práticas antigas.

A fotografia, com a respetiva e inseparável circulação nos múltiplos dispositivos que a modernidade facultou, é o meio predileto da vida e da rememoração constante. A sua digitalização e veiculação pela internet correspondem à fluidez dos tempos e do espaço. Em certa medida, a fotografia matou o museu-mausoléu e a própria morte já não é o fim.

Os olhos passeiam pelos tecidos. O assombro do detalhe e a riqueza de motivos atestam o gosto da alta burguesia do século XVIII até ao presente. Dos primeiros exemplares resgatados ao esquecimento e à degradação são-nos mostrados o fio laminado de prata, a seda brilhante e a elegância esculpida dos corpos femininos; do estilo Império chaga-nos a fluidez da silhueta e a influência francesa da corte imperial; do Romântico, a delicadeza e o drama; da Belle Époque, o detalhe da renda ou do bordado e dos detalhes florais estilizados; segue-se o século XX, da rigidez formal e masculina do traje sufragista à libertação plena da mulher. A coleção não será tão faustosa quanto as suas congéneres europeias, mas é certamente uma coleção com o fundamental das elites portuguesas. O que está exposto é apenas uma ínfima parte de uma coleção com mais de 38 000 peças em reservas, a maior parte delas doadas.

Abracemos estereótipos: as reservas – esse guarda-roupa multiplicado em salas, gavetas e armários – são o desejo de muitas mulheres, a curiosidade de muitos gays, a ardente cobiça de qualquer drag. A tentação do toque permanece, mas a imaginação retoma a sua posição. As capas devidamente alinhadas nos pendurados; os sapatos – sem pares soltos ou perdidos – perfilam-se metodicamente por cor e feitio; à espera de catalogação e descrição rigorosa, uma sombrinha de renda preta, com cabo de marfim esculpido, conserva ainda a caixa de cartão original; os casacos baços e desengraçados dos homens são dispensáveis – o traje feminino é consideravelmente mais interessante e apetecível; as bolsas e carteiras são pouco maiores que as mãos. Tudo tem e obedece a uma ordem cuja sacralidade desconhece quem não lá trabalha. As vestes são devidamente acondicionadas, com papel de seda branco, cujo rufar e destapar anima a atmosfera soturna das reservas. O ritual animista de dar vida e luz aos objetos obriga a levantar panejamentos de proteção, a abrir armários e gavetas pesadas, a escancarar portadas e a ligar focos de luz, sempre sobre o olhar cuidadoso da conservadora.

Regressando ao projeto de Carolina Pimenta, as diferentes escalas da fotografia remetem para dimensões diferentes, mas concordantes, da vida destes trajes. Se num primeiro instante temos acesso ao lugar-refúgio, num segundo momento atenta-se a qualidade artística e artesanal do artefacto. Uma pormenorização microscópica, dissolve tudo até à abstração ou, em alternativa, amplia o esforço laboral usado na confeção de cada peça. No cruzar e entrecruzar de linhas, o olho consegue discernir o material, o trabalho da agulha, o trabalho de tecelagem. Cada linha é o manifesto de um tempo, de uma cronologia, de um labor que sobrevive agora vagamente nas lojas de alta costura e nas multinacionais espanholas de fast fashion.

Finalmente, se há algo que o projeto procura sublinhar é a noção de arte como saber fazer, como poiesisarte como algo que requer conhecimento geracional, trabalho partilhado, paciência e artifício no momento de conceber o artefacto, termos que, aliás, comungam da mesma matriz etimológica.

 

(A Umbigo saúda e agradece a toda a equipa do Museu Nacional do Traje pelo incondicional apoio prestado, pela simpatia e pelo profissionalismo manifestados durante a produção do Diálogos: a José Carlos Alvarez, Elsa Mangas Ferraz e Xénia Flores Ribeiro o nosso muito obrigado. Estamos certos – apesar de parecer banal – que, mais que as coleções, são os profissionais e técnicos que lá trabalham que fazem os museus. E, naturalmente, a Carolina Pimenta, sem a qual este projeto não teria sido possível. Apoio: 35mais1 Fotografia.)